domingo, 5 de outubro de 2014

Capítulo Terceiro

Desliguei o celular.
- Mas que droga! - Disse alto em tom de fúria. Isso chamou a atenção de Nara, que logo estava perto de mim. - Ele está aqui perto, Nara. - Virei-me pra ela, que entendeu o que quis dizer.
Conheci Nara quando fui adotado por um homem rico, depois da morte da minha mãe. Ele sempre estava viajando e uma vez me disse que me traria algo tão raro quanto meus olhos. E a trouxe. Claro, com 14 anos de idade, senti muito medo daquel réptil, que tinha apenas 80 cm, na época. Agora ela está com 10 metros e 90 de diâmetro, com um guizo enorme. A grossura de seu corpo às vezes me assusta. Ela é branca como a neve e seus olhos mais negros que a escuridão. Apesar de todo esse tempo junto a mim, eu sempre fiquei fascinado ao ver seus olhos mudarem de cor quando captura uma presa. Ela é linda e astuta. Na verdade, foi o melhor presente que já ganhei.
- Por que não o matei quando tive a chance? - Nara chacoalhou sua cauda e saiu do cômodo. Saí também e fui até a sala, sentando de qualquer jeito no sofá, pra pensar em outra coisa, que não fossem os problemas.
A garota!
Fui até seu quarto, disposto à acordá-la. Para minha surpresa, ela não tinha dormido, como havia lhe ordenado. Ela olhou pra mim e me sentei ao seu lado. Suas roupas ainda eram aquelas em que a encontrei na noite anterior. Saí rapidamente do quarto pegando uma toalha e uma camiseta qualquer e voltei até ela, jogando tudo em sua cama.
- Não é grande coisa, mas pelo menos você não vai ficar cheirando a lixo. - Ela apenas olhou o que joguei na cama e voltou a olhar pro chão. - Levante-se e tome logo um banho. Depois eu preciso conversar com você.
- Tudo bem. - Ela se levantou, pegou a camiseta e a toalha e saiu, indo para o banheiro.
Quinze longos minutos depois ela já estava vestida. Minha camiseta lhe servira como uma camisola bem curta. Sentei-me novamente do seu lado.
- Fale-me sobre o homem dos olhos raros.
- Eu... Eu tinha três anos. Apesar da idade, lembro-me de tudo. - Ela se encolheu, na cama - Eu o vi me pegar no colo enquanto mamãe e papai choravam, sentados na sala. Ele brincou comigo e olhou bem pra mim, me fazendo ficar hipnotizada por olhos tão belos. - Ela olhou pra mim e se retraiu, talvez lembrando que eu disse para nunca mais dizer o quanto esses olhos eram bonitos, para ela. - Então, ele matou meu pai primeiro. Eu comecei a chorar, sem saber o que estava realmente acontecendo, vendo meu pai imóvel na sala. Minha mãe começou a gritar e foi pra cima do homem dos olhos raros... Ela queria me tirar de seus braços. Então, ele me fez deitar em seu ombro, para não ver a morte da minha mãe. Eu chorava freneticamente enquanto ele dava o estrondoso tiro. Depois disso, não lembro o que aconteceu. Na minha próxima lembrança, eu já morava no quarto de um motel aqui perto. Uma prostituta cuidava de mim às vezes, quando ela não estava na prisão. Ela não era uma pessoa muito boa, apenas dizia que eu era muito parecida com ela quando mais jovem. Ela foi assassinada quando eu tinha dezesseis anos e a partir daí, tive que trabalhar para me sustentar sozinha.
- Hn. - Ela se encolheu novamente. - Você tem tanto medo de mim assim?
- Seus olhos me dão medo. E se você for como ele? Que poderia me matar... Eu...
- Será que nunca parou pra pensar que se eu quisesse, já teria matado você na noite passada?
- E por que não o fez? - Ela olhou para mim, para o fundo dos meus olhos claros que dizia temer, quem sabe procurando a resposta pela sua pergunta.
- Eu não sei. - Falei por fim, com uma expressão derrotada. Eu realmente não sabia porque a salvara. Ou sabia, mas não queria admitir.
- Como assim não sabe? Eu acho que já matou muitas pessoas antes... - Ela olhou para frente, na direção em que eu olhava. Eu não queria encará-la, e acho que ela pensava o mesmo.
- Você quer um motivo? Bem, não tem nenhum. Se contente com isso. - Me levantei - Deveria me agradecer ao invés de procurar inúteis "Por quês".
Ela continuou calada.
- Talvez o real por quê disso tudo, é que estou lhe dando uma chance que eu não tive. Uma chance de recomeçar e recuperar o tempo perdido.
Antes que eu chegasse até a porta, uma mão fria e macia segurou meu braço.
- Todos têm a chance de recomeçar. - Virei meu braço, de forma que ela se soltasse de mim.
- Vá dizer isso a um assassino que tem mais de mil mortes em suas mãos. - Me aproximei perigosamente dela, olhos bem próximos - Não me venha com frases ditas em livrinhos de auto-ajuda.
E saí do quarto. Antes que eu entrasse no meu, ela saiu no corredor.
- Hey, qual é o seu nome? - Que garota insistente.
- Me chame de Hunter.
- O meu é Samantha. Me chame de Sam, apenas. - E entrou no quarto, fechando a porta devagar.
Ignorei-a e fechei a porta do meu quarto, jogando-me desajeitadamente na cama.
O fato de como ele havia me achado era uma incógnita. Fiz questão de "sumir do mapa" depois que o homem que cuidava de mim morrera, há sete anos atrás.
Ainda deitado, encarava o teto, desatento à qualquer outra coisa que não fossem meus pensamentos sobre esse maldito assassino que me encontrara.
O celular toca de novo.
- Sabe que nesse mundo não pode haver lugar para nós dois.
- Por isso já estou me encarregando de matá-lo.
Desliguei o celular antes que ouvisse resposta. Retirei a bateria do mesmo, jogando-os contra a parede. Um barulho forte ecoou e nem sequer olhei para confirmar que o quebrara.
- Eu preciso sair daqui. - Tentei falar sozinho, mas notei Nara no meu quarto, que chacoalhou levemente a cauda, confirmando. - Eu não estava falando com você... - Me levantei e comecei a arrumar uma mala com todas as minhas roupas. - De qualquer forma, aqui não é mais um bom lugar para ficarmos, Nara.
Pretendia sair e ir para um lugar bem longe, se possível. Mas deixaria a casa intacta, para o caso de precisar voltar.
Mas me esqueci de algo, que particularmente não é importante, mas que é como uma pedra no meu sapato. A garota. Se eu a deixasse aqui, meu pai virá e a matará. Se eu a levar, posso ter problemas. Aliás, porque eu decidi deixá-la viva?
Sentei-me na ponta da cama, com mil pensamentos ecoando em minha mente. Seus olhos eram tão parecidos com os dela. Eram verde esmeralda. Esses sim são olhos que eu gostaria de ter. Essa menina se parece muito com a minha mãe e não podia negar que isso me incomodava de tal forma que eu já estava ficando louco. Era uma reencarnação dela. Uma visão, um fantasma de seu passado. Querendo ou não, isso fazia com que eu a mantivesse viva até agora.
Mas que inferno! Eu não sou assim!
Peguei uma pistola carregada que estava no meu armário e fui em direção ao seu quarto. Escancarei a porta com toda a força que eu tinha e apontei a arma na direção da cama. Vazia.
Olhei para o cômodo e a menina estava em um canto, encolhida.
- O que faz aí? - Disse grosseiramente, olhando minha vítima.
- Eu escutei um barulho de algo batendo na parede. Fiquei com medo e me escondi aqui.
- O "algo" era meu celular. - Disse ríspido.
- Por que está com essa arma?
Me aproximei sorrateiramente dela, enquanto se encolhia cada vez mais. A janela estava aberta, mesmo sendo madrugada e a luz da lua refletia em seu rosto, principalmente em seus olhos verdes.
E pela primeira vez na vida eu hesitei em matar alguém.
- Eu, é... - E pela primeira vez na vida, gaguejei também.
- Você ia me matar?
Fiquei mudo.
- Ia me matar, não é?
- Cala a boca! - Gritei e sentei em sua cama, segurando a arma e abaixando a cabeça. - Mas que droga garota! Por que... Por que você tinha que... Esses olhos. Esses malditos olhos.
Senti uma mão na minha perna e a vi mais de perto, ajoelhada.
- Me desculpe, mas vou dizer de novo... Seus olhos são lindos. Não se mutile por eles.
Me levantei, afastando-me de seu toque.
- Não estou falando dos meus. Mas dos seus. - Me virei de costa pra ela, meu corpo todo estava tenso. - Seus olhos são a única coisa que me impedem de te matar. Eles me lembram... Alguém. - Ela não disse nada - Não saia daqui.
Fui até meu quarto, pegando uma bermuda preta e uma camiseta com gola V, a menor que eu tinha e quando voltei pro cômodo onde estava, joguei em sua cama.
- Vista isso e coloque o seu sapato.
Nara chegou ao quarto, fazendo a garota subir na cama, como se tivesse visto um monstro. E como se uma cobra como ela não fosse capaz de subir numa cama.
- Nara não faz nada a não ser que eu mande, odeio repetir o que já disse antes.
- Mas ela é uma cobra! - A garota olhava apenas para os olhos negros de Nara.
- Sério? Achei que fosse uma minhoca gigante. - Fiz uma expressão ríspida e ela riu. - A intenção não é ser uma piada. Você vai viajar com ela. Ambas estarão no mesmo espaço.
Ela continuou olhando Nara, mas relaxou e se sentou novamente.
- Como assim viajar?
- Nós vamos fugir daqui. - Me virei para Nara, que agora saia chacoalhando seus guizos. - A não ser que queira ficar aqui. E talvez, se tornar comida dos leões da cidade.
- Para onde nós vamos?
- Connecticut.
Saí do quarto, deixando-a sozinha para trocar de roupa e fui me certificar que as coisas importantes já estavam na mala, principalmente meus armamentos. Não queria deixar nada que tivesse alguma peculiaridade minha aqui. E, claro, não parava de pensar na ideia brilhante que eu tive de levar a menina cujos malditos olhos são do demônio. Quis amaldiçoar minha mãe por ter olhos tão peculiares, me fazendo lembrar muito dela ao olhar essa garota que eu não tinha coragem de matar. Sua atitude medonha, seu coração que implorava por proteção. Tudo. Era igual a única mulher que eu amei na minha vida. E isso me fazia sentir um assassino inútil.
Ela já estava na porta, acanhada. Olhando para baixo, vestida com minha blusa que ficara larga para ela. Tão larga que, se erguesse os braços, poderia para ver o seu sutiã. Por sorte, a bermuda coube perfeitamente. Bem, pelo menos na cintura.
- Vá para a garagem e me espere lá. Certifique-se de ter pegado tudo o que tem. Não pretendo deixar nada aqui.
Ela acenou e saiu.
Peguei algumas comidas rápidas que estavam no armário, como salgadinhos, bolachas e doces. Saí apressadamente, segurando três malas: Com minhas roupas, com meus armamentos e com o dinheiro do meu último crime.
Ela já estava lá, na porta do carona, me esperando. Assim que cheguei com as malas pesadas, ela veio me ajudar.
- Não preciso de ajuda. - Falei de antemão e ela parou o que pretendia fazer e voltou à sua posição inicial, quieta e acanhada.
Coloquei tudo no porta-malas, deixando apenas a sacola com os lanches “saudáveis”, mas que de qualquer forma deveriam servir pelo menos por umas horas, eu acho. De qualquer forma, pararia em algum lugar para a garota se alimentar.
Assim que desativei o alarme, a garota abriu a porta do passageiro. Nara atravessou entre suas pernas e entrou no carro, fazendo-a dar um grito agudo, tapando a boca em seguida.
- Fiquem aqui dentro do carro. E, garota, sem gritos histéricos. Já disse que Nara não te fará mal até que eu mande que ela o faça. Vou verificar os fundos. Enquanto isso, se tranque aqui dentro.
Ela acenou concordando e assim o fez.
Fui até o portão da casa, indo sorrateiramente através do jardim. Não pude perceber a presença de ninguém.
Ainda meio escondido, decidi abrir o portão devagar e ver se havia alguém andando por aí. Na verdade queria ver se ele estava andando nos arredores. Como eu ia de carro, seria fácil ele me seguir.
Não havia ninguém. Pelo menos eu acho. A rua estava tranquila, como sempre. Saí do portão para fora, me arriscando um pouco mais. Fui até o lixo onde havia deixado a cabeça da prostituta, mas só encontrei uma sacola com bastante sangue dentro. Vazia. Mas no meio do sangue havia um papel. Retirei, com certo nojo de lá e com dificuldade li: “(xx) 0000-0000. Eu vou fazer você me procurar. E vou esperá-lo pacientemente.”
Sabia que uma hora eu teria de enfrentá-lo. Guardei o papel, mesmo pingando sangue no bolso da calça e fechei muito bem o saco, colocando-o dentro de outro que havia ali, para não levantar suspeitas.
Ainda olhando para todos os lados, voltei até a garagem.
- Puxa, você continua viva, garota. - Me virei para ela, que estava encolhida no banco, evitando olhar para Nara, que se acomodava como um gato no banco de trás. Realmente, às vezes não parecia que ela era uma cobra assassina.
Na verdade, nem eu estou parecendo um assassino de verdade depois que essa garota decidiu aparecer.
De qualquer forma, ela ignorou meu comentário e liguei o carro, arrancando o mais rápido que pude para a rua. Eu poderia fechar o portão por controle, mas decidi dar uma olhada ao redor indo fechar manualmente mesmo.
Só havia silêncio. Ninguém na rua. Ótimo!
Voltei ao banco do motorista e arranquei com o carro, fazendo a menina colocar apressadamente os cintos de segurança.
Dirigi por duas horas, através de uma enorme avenida. Sabia que eu estava indo por uma rota mais longa, mas seria assim, até eu perceber que estaríamos seguros o suficiente para chegar ao nosso destino.
Saindo de San Diego, chegamos em Los Angeles. Parei num local deserto e que poderia deixar meu carro à espreita. Olhei no relógio.
- O centro abre às sete da manhã. Então, temos três horas e meia para descansar. - Ao desligar o carro, as portas destravaram. Então as travei novamente. - É tempo suficiente para o que temos que fazer amanhã.
A menina nada disse, apenas concordou com um aceno e reclinou seu assento, para se sentir mais confortável.
Reclinei apenas um pouco, porque eu deveria estar esperto com qualquer movimento estranho por ali. Em menos de dois minutos a menina já havia adormecido, mas eu não consegui fechar os olhos, de maneira alguma.
A menina estava virada na minha direção de olhos fechados. Então pude perceber que ela era apenas uma qualquer, com um triste passado. E que talvez hora ou outra, morreria. Na minha mão, ou não. Mas o fato é que eu estava agindo como um idiota. Achava-me um assassino organizado, no fim das contas. Daquele tipo que agia como um cara qualquer de dia e era um matador à noite. Sempre agi cautelosamente e nunca deixei vestígios. Ninguém conheceu minhas duas faces, a não ser meu pai.
E agora, ela. Então eu paro pra pensar que se nos conhecêssemos em outra ocasião, ambos com vidas diferentes, eu a visse como alguém que lembrasse minha mãe. Talvez eu pudesse sentir algo a mais, como uma amizade.
Eu ainda a encarava, lembrando-me da minha pistola na cintura, sempre a deixava ali para emergências.
Uma hora de pensamentos taciturnos e sem sono. Nara estava toda enrolada no banco de trás, os olhos negros completamente fechados.
- Hun... Não... Me... Por...
Além de patética, acanhada, agora é louca.
- Cala a boca! - Disse com o tom de voz um pouco baixo, fazendo ela se remexer um pouco em seu assento.
- Hunter...
Ela estava sonhando comigo? Me aproximei de seu rosto, enquanto balbuciava palavras que não estava conseguindo compreender muito bem.
- Não me mate... - Sussurrou baixinho. Se eu não estivesse perto o suficiente, não teria escutado.
Claro que ela sonharia com esse tipo de coisa. Ela vive com medo de mim, mas não me senti bem, de certa forma. Foi como se a minha mãe tivesse sentindo medo de mim.
- Mas que porra, Kaleb! Confundindo uma vadiazinha com a sua mãe? Onde você colocou seu maldito cérebro? - Brigava comigo mesmo, em uma conversa um tanto enfadonha. - Mata logo ela. Livre-se de um peso. Mas que...
Aqueles olhos me encaravam. Estavam inchados, por ter acabado de acordar. Olhando no relógio, notei que havia passado uma hora desde que estacionamos e eu ainda continuava com insônia e como se isso não bastasse, pensava em coisas absurdas.
- O que você está olhando? Volte a dormir.
- Por que você tem que ser tão frio?
- Volte a dormir.
Ela se virou, de costas para mim.
- Você deveria me matar logo. Deveria livrar-se mesmo desse peso, ao invés de eu ter que ficar aqui pensando quando vai ser meu último dia. O dia em que você vai finalmente chegar e apontar a arma para mim, apertando o dedo no gatilho.
Não disse nada. Decidi ignorar sua atitude retórica e me virei pra a janela, para finalmente dormir.

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